desmame

filha, 

durante muito tempo eu me desesperei ao contar a metragem das paredes desse apartamento. tive vontade de tacar a televisão na parede por encontrar nela minha companhia diária. cansei de não ter nada que fazer a não ser olhar e me dedicar a namorar você. eu sentia falta do meu trabalho, da rotina antes de você, de escolher uma roupa bonita que não precisasse de botões pra amamentação, de pegar o carro e ir dirigindo, dos almoços com as colegas de trabalho. acho que eu sentia falta de mim. 

não me leve a mal, meu amor, mas quando você nasceu uma parte minha morreu e eu sou muito mais feliz com quem eu me tornei por sua causa, mas o processo até chegar aqui foi doloroso. e quando chegar a sua vez de parir eu não vou te iludir, a maternidade é luz, mas tem suas sombras. é a alegria do nascimento com o luto de uma parte nossa que nunca mais voltará a ser a mesma. é complexo, então fica pra outro dia. 

o que eu queria te dizer é que há uma semana, quando a volta do trabalho passou a se aproximar com pressa, sinto um gelado no coração. namoro com mais devoção seus "processos de acordamento", como passei a chamar seu despertar. desligo a televisão só pra ficar olhando você mamar. tenho vontade de te dar vários banhos por dia porque você fica tão feliz em alagar o quarto e eu aprendi nesses cinco meses que sua felicidade é sinônimo da minha. e então, sem que eu quisesse tomar conhecimento o dia de hoje chegou.

lá vou eu ter almoço com as colegas, colocar blusa sem botão, dirigir o carro, ligar o som...surpreendentemente parte de mim preferia contar os 53m desse apartamento, porque é nele que você está. eu tinha esquecido que parte de minha tinha ido embora. vou ter que aprender a andar sozinha, tal qual você. hoje começo a engatinhar. tô cambaleando ainda. acho que tô com medo.