voyeur

quando eu andava de metrô as pessoas me inspiravam.
eu nunca ficava sem escrever aqui no blog, porque eram tantas as possíveis histórias! adorava ficar naquele devaneio discreto, olhando as pessoas de rabo de olho (quando não o fazia incansavelmente de maneira direta), imaginando suas vidas pelas tatuagens, pela vestimenta, pelo que liam ou ouviam. tinha vontade de fazer entrevistas com algumas delas, meu lado jornalista literária pulsando, cheio de vontade de saber e contar aquelas histórias. com algumas delas eu puxava conversa, com outras imaginava... a velha história do tão citado Samuel Rosa que adoro repetir.

lembro quando acontecia da pessoa descer antes do esperado, num ponto de ônibus ou estação de metrô. eu sentia uma vontade louca de pedir que ficasse, não!, não desce nesta estação ainda não, eu ainda não consegui desvendar (e desmembrar e imaginar e construir) você! mas na maior parte do tempo, a vontade aguda era de descer junto com ela - geralmente era ela, poucos ele - e descobrir um pouco mais, confirmar minhas suspeitas, encontrar novos segredos. eram pessoas especiais, pois eram escolhidas em espaços pequenos lotados, cheios de rostos e histórias a serem desvendadas, mas que se destacavam ou pela beleza, ou pelo modo de sentar... quem sabe sorrir?

hoje pouco ando de metrô e tenho que confessar que há um alívio nessa constatação. afinal de contas, quem aqui já se aventurou por são paulo às 7 da manhã ou da noite ou em qualquer outro período neste meio tempo, bem sabe que é tarefa árdua. quando entro no meu carro neste calor de quase quarenta graus e ligo o ar condicionado só consigo pensar que Deus teve piedade de nós de alguma forma e não há traço de memória que me faça voltar para a delícia que era estudar aquelas histórias. ademais, há sempre muitos carros.

são paulo se fosse palavra seria gente (ou oportunidade? nunca decidi!) e hoje me peguei analisando a moça do carro ao lado. o trânsito permitiu que eu notasse seu braço tatuado, a calota do lado esquerdo faltando, o óculos de sol roxo e os cabelos encaracolados. em determinado momento o celular dela tocou, mas não consegui escutar o que dizia (maldito motoqueiro!), só notei que parecia bem irritada. parecia o tipo que solta palavrão sem parar, que trabalha tocando violão em barzinho, que tem segurança em chegar em qualquer homem e que nunca pensaria em engravidar. dessas mulheres, tão avessas a mim, autossuficientes, cheias de atitude, que ignoram a vontade de filhos pois se bastam e fim. gostei dela de cara. 

mas então o caminhão que manobrava à frente liberou o trânsito e enquanto eu maldizia a rapidez do trânsito surpreendentemente bom que me tirava o prazer de observá-la, ela cheia de pressa me cortou pela esquerda, logo virando na continuação da avenida conceição e só parando depressa para não atropelar um pedestre desses folgados que cruzam a rua sem olhar pros lados e quase morrem nos deixando a culpa. parei logo atrás dela e li no adesivo cafona que ia colado no vidro traseiro do corsa : "cuidado, elis à bordo". só então notei a cadeirinha de bebê no banco de trás. ao menos acertei o gosto por música, pensei enquanto ela buzinava com força mostrando o dedo do meio para a pedestre desavisada.

senti saudade do metrô até o minuto seguinte, quando aumentei para o nível três, o bom samaritano, digo, o ar condicionado. 

Comentários

Mafê Probst disse…
FLÁ TÁ DE VOLTA!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! ♥
Que saudade que eu estava dos teus contos. Tua narrativa envolvente como sempre. Fiquei com vontade de andar de metrô (não nesse calor) e fiquei com vontade de conhecer a moça - e outras tantas.
anotar para a vida: prestar mais atenção nas pessoas.

Beijo Flavinha

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