(in)fidelidade


ela entrou no metrô e se sentou no banco vazio com o coração sobressaltado.

não acreditava que estava fazendo aquilo. como podia estar fazendo aquilo? se perguntou uma centena de vezes quais eram as razões e então como um flash as memórias do sorriso grande, dos braços enormes e o cheiro característico pousaram em sua mente. era por isso que ela estava fazendo aquilo. porque ele era irresistível. porque ele tinha a melhor lábia que já tinha ouvido e porque o simples toque das suas mãos em suas costas no dia anterior tinha provocado reações novas em todas as partes do seu corpo. as pessoas a ignoravam no vagão, não percebiam seu suor frio escorrendo pela testa, as pernas sem parada balançando e os dedos nervosos colocando sua franja de um lado para o outro. elas não sabiam. não entendiam que naquele dia, enquanto iam trabalhar, como aparentava o moço de terno à sua frente; estudar, como indicavam as roupas da menina ao seu lado; ou comparecer à uma consulta como a senhora do seu lado parecia ir, por conta dos exames do laboratório no colo...ela iria trair. ela iria destruir seu relacionamento de dois anos e meio, a confiança que tinha se estabelecido e o orgulho que emanava de si por dizer o quão fiel sempre o foi. mais que isso, ela estava prestes a destruir sua dignidade, seu caráter como ser humana, suas melhores qualidades. estava prestes a se destruir e a construir uma nova "ela", uma pessoa cheia de culpa, de remorsos e de vergonha. sentiu a boca ficar seca. olhou mais uma vez para o moço de terno com a certeza de que ele já o havia feito. tinha uma aliança no dedo e agora a fitava com insistência e interesse. ele era um traidor. a menina com piercing no nariz e mochila, talvez viria a trair um dia, talvez recentemente, talvez em alguns meses ou dias. e a senhora? será possível que tenha passado os quase oitenta anos que aparentava sem nenhum deslize? com moral e fidelidade? as pessoas olham para os idosos e acham que eles se transformam em pessoas boazinhas. se esquecem que quem nasceu filha da puta morrerá filha da puta. ela estava se tornando uma filha da puta. olhou para o mapa de estações e viu que tinha mais quatro pela frente, o suficiente para desistir, o bastante para descer do trem ir para o banheiro mais próximo jogar água no rosto e voltar para a realidade, tomar as rédeas de si. o trem parou e as portas permaneceram abertas um tempo demasiadamente longo, como se a indagassem:"você tem certeza disso, mocinha?". 

ela não tinha. mas lembrou-se daqueles lábios, da lábia, da pele e do que poderia ter naquela tarde. sentiu a boca seca mais uma vez. pegou o espelho dentro da bolsa e seu batom avermelhado, quase intacto e o deslizou sobre os próprios lábios. evitou encarar seus próprios olhos. tinha medo. 

Comentários

Ana Luísa disse…
Ai, Flá! Não me diz que terminou aí, quero saber mais... Preciso!
Você arrasa nos contos! <3
Sua MAFIOSA linda!
Anna Vitória disse…
Adorei a perspectiva da história, Flá!
E que delícia poder te chamar de mafiosa <3
beijos
aline disse…
ai, flá! peço desculpas pelo sumiço, não tenho tido tempo de nada. nem de escrever, que é a coisa que eu mais gosto de fazer :(
essa vida não tá fácil!


adorei o texto e relembrei algumas coisas da minha própria vida. pontadinha de angústia!

saudade dos seus textos!
Thay disse…
Wow! Que diferente dos seus textos! Mas digo que gostei tanto quanto dos outros, e aproveito pra emendar: tem um continua? Tem que ter! Ahh, e a frase "as pessoas olham para os idosos e acham que eles se transformam em pessoas boazinhas", nossa! Penso exatamente isso! A maioria das pessoas tem essa visão de que todo idoso é fofinho e bonzinho, mas não é bem assim! Só pq a pessoa agora tem uns cabelos brancos não a redime dos erros do passado.
Beijo!
JÉSSICA disse…
Texto muito bom, do tipo que se lê rápido pra passar o ritmo do pensamento. adorei! Passa no Correria de Mulher :)
Deyse Batista disse…
Ai Flá, eu nunca consigo ver na história uma simples história. Consegui ver nessa, por exemplo, como às vezes as pessoas são más por lidares com pessoas más - ou filhas da puta, tanto faz. E de como a gente aprende mais apanhando que recebendo carinho. E eu adoro os seus textos com essa vibe, apesar de serem muito pesados e de eu estar torcendo para em breve ver algo mais alegre por aqui.
Beijos, MAFIOSA!
Se achar que combina com o layout, tá faltando nosso selinho divo por aqui :))

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